sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A cidadania e o princípio autofágico da democracia

Tive recentemente, durante uma das minhas aulas de Filosofia de 10º ano, a ocasião de manter com os meus alunos uma discussão – por eles iniciada – a propósito dos méritos da (nossa) democracia e da eventualidade de lhe existir uma alternativa mais válida. Patenteando uma atitude que se começa a revelar como lamentavelmente crónica nos dias que correm, cedo surgiram os argumentos daqueles que propunham o regresso da ditadura, o retorno daquele sebastiânico Salazar sob cuja iluminada direcção o nosso modesto país tanta riqueza acumulou, e cuja policia secreta um tão excelente trabalho realizava – e realizaria! – no saneamento de tudo o que fosse corrupção, ilegalidade e patifarias variadas. Retorqui às sucessivas interpelações recorrendo aos mais variados argumentos, dos mais aos menos convencionais, concluindo a questão com um apelo à responsabilidade e comprometimento políticos indispensáveis a qualquer cidadão de uma sociedade democrática que, embora cativando visivelmente a atenção de todos, temo que o tenha feito mais em virtude da paixão que emprestava às minhas palavras do que de uma genuína compreensão do seu significado e das suas implicações por parte do meu reduzido auditório.

            Esta singela experiência levou-me a (re)considerar um aspecto da nossa vida política que, embora trivial, tendemos a esquecer em demasia: o facto de qualquer sistema democrático conter, em si mesmo, um princípio autofágico. Acontece que, se o próprio fundamento da democracia enquanto modelo político pode ser encontrado no princípio de liberdade de escolha – na possibilidade de cada indivíduo ser livre, não apenas de escolher o seu próprio percurso na vida, mas também de contribuir para determinar o rumo da sua sociedade e da sua polis –, há algo do qual temos forçosamente de estar conscientes; assim como essa liberdade nos permite escolher tomar decisões políticas conducentes à crescente virtuosidade da democracia, permite-nos igualmente tomar decisões que conduzam ao seu fim. É quase dolorosamente evidente quando assim enunciado. E nem sequer tratamos aqui de uma qualquer conspiração diabólica daqueles infames “inimigos da democracia” cuja fantasmagórica sombra pretensamente paira sobre os incautos; o princípio da dissolução da democracia pela própria democracia decorre, simplesmente, do facto de permitir aos seus cidadãos tomar decisões erradas.

            Regressando ao caso com que começámos, o que se torna ali realmente preocupante é o facto de que, pese embora a manifesta ignorância relativa à realidade histórica à qual faziam menção – limitando-se a fazer fé clichés hoje reproduzidos à mesa do café e do jantar –, todos aqueles jovens, sem excepção, sustentavam o que sustentavam por acreditarem poder estar ali a solução para os grandes males da sociedade contemporânea. Nenhum pretenderia, intencionalmente, contribuir para a sua própria subjugação às mãos de um qualquer tiranete; era, contudo, nessa direcção que indubitavelmente rumavam. Talvez seja este o maior atestado de relevância que podemos atribuir a uma genuína educação para a cidadania, que passa não só pela escola mas também – e fundamentalmente – pelo todo social, por todos nós que somos professores, pais, irmãos, amigos. Nas palavras de Rousseau, embora a vontade geral seja “sempre recta”, “o juízo que a guia nem sempre é esclarecido”. Cabe-nos a nós lutar para que as ocasiões em que reina o esclarecimento suplantem em número a alternativa.

Sem comentários:

Enviar um comentário