quinta-feira, 17 de março de 2011

QUANDO O MUNDO MUDA…… POR CAUSA DUMA MULHER

“Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres ”
(Simone de Beauvoir)

Por: Florbela Carrola
Não sendo particularmente simpatizante dos dias destinados a assinalar datas, pessoas ou outros acontecimentos, pediu-me hoje a vontade que relembrasse a força de algumas mulheres neste 8 de Março, Dia Internacional da Mulher.

Quando me aventuro nessa curta viajem retrospectiva, verifico que no contexto grego, Platão considerou as mulheres, juntamente com os escravos, como seres destituídos de razão. Seu discípulo Aristóteles, não foi muito mais longe. Ao preocupar-se em calcular a melhor idade em que deviam procriar, facilmente se infere qual a ideia que tinha sobre este género - o feminino. Note-se que a evolução da mentalidade ocidental em relação às mulheres pouco mudou. Já no séc. XVIII, Rousseau, apesar de iluminado, alvitra que as mulheres devem aprender muitas coisas, mas apenas aquelas que lhes convém saber. Fico a pensar….que coisas seriam essas que lhes conviria saber.

No séc. XX, por influência da Condessa de Gencé, que tanto se dedicou á formação feminina, aceita-se que os jornais não se fizeram para as meninas, porque a diversidade dos assuntos que tratam e das informações que dão, apenas contribuiria para trazer a uma rapariga impressões e preocupações à sua vida normal, o que revela o quão firmemente enraizado está na cabeça das próprias mulheres, o seu papel na sociedade.

No entanto, não será necessário um esforço herculeano para encontrarmos mulheres que precocemente se distinguiram no campo do conhecimento. Assim, do contexto da civilização egípcia, relembro uma mulher que aprendi a admirar, mas a qual nunca tive o prazer de conhecer através dos manuais que li, enquanto estudante adolescente. Chamava-se Hipátia de Alexandria e além de matemática e professora, destacou-se também na Astronomia. Muito antes de Kepler, ela equacionou a possibilidade do movimento elíptico da Terra. Suponho que não há nos livros escolares, referência a esta mulher, mas associados a esta teoria, aparecem homens como Keppler e outras mentes prodigiosas do sexo masculino que mudaram a nossa concepção do mundo.

No contexto medieval, numa época em que o saber é apanágio da Igreja, é reconfortante recordar Santa Hildegarda de Bingen, que se notabilizou na medicina, escrita e poesia. Fez importantes estudos sobre plantas medicinais, compilados em tratados, abordando vários temas ligados à
Medicina e oferecendo, inclusivamente, métodos de tratamento para várias doenças. Também acerca desta mulher, parece-me que reina o silêncio nos manuais escolares ou outras matérias similares.

Chegamos ao séc. XVIII e regozijamo-nos com Marie Gouze. Feminista revolucionária, foi acusada de ter esquecido as virtudes que pertenciam ao seu sexo e executada em 1793. Ficará para a história como aquela que propôs a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, inspirada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Já no séc. XX, Rosa Parks, ao que consta mulher de aparência frágil, todavia suficientemente forte nas suas convicções e possuidora de uma determinação ímpar, iniciou um movimento, ao qual se juntou Martin Luther King e que havia de culminar com a mudança da condição cívica dos negros na América. Em Portugal, lembrei-me de Ana de Castro Osório, pioneira na luta pela igualdade de direitos entre o sexo masculino e feminino. Em 1905, escreveu Mulheres Portuguesas, o primeiro manifesto feminista português, sendo ainda considerada a criadora da literatura infantil em Portugal.

Pergunto-me: porque razão se verifica um vazio sobre estas figuras femininas, nos manuais escolares? Há histórias que precisam ser contadas, vidas que têm que ser (re)lembradas para que se possa compreender e valorizar a nossa própria condição no presente.

Hoje quis celebrar a força e arrojo de algumas mulheres, mas certamente outras, não menos importantes, ficaram por assinalar. Mulheres que fizeram história e outras que foram vítimas da história; algumas que tiveram voz e outras que perderam a vida por causa da sua incómoda voz. Mulheres que venceram e outras que foram vencidas. Mulheres que tiveram consciência do seu papel na transformação social e outras que mudaram a história, sem ter consciência desse papel. Quero por fim questionar-me como seria o mundo se, um dia, estas mulheres tivessem desistido de Ser quem teimavam Ser.


Para todas Elas, que pensaram diferente e se assumiram como plenas cidadãs, fica a minha admiração.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A cidadania e o princípio autofágico da democracia

Tive recentemente, durante uma das minhas aulas de Filosofia de 10º ano, a ocasião de manter com os meus alunos uma discussão – por eles iniciada – a propósito dos méritos da (nossa) democracia e da eventualidade de lhe existir uma alternativa mais válida. Patenteando uma atitude que se começa a revelar como lamentavelmente crónica nos dias que correm, cedo surgiram os argumentos daqueles que propunham o regresso da ditadura, o retorno daquele sebastiânico Salazar sob cuja iluminada direcção o nosso modesto país tanta riqueza acumulou, e cuja policia secreta um tão excelente trabalho realizava – e realizaria! – no saneamento de tudo o que fosse corrupção, ilegalidade e patifarias variadas. Retorqui às sucessivas interpelações recorrendo aos mais variados argumentos, dos mais aos menos convencionais, concluindo a questão com um apelo à responsabilidade e comprometimento políticos indispensáveis a qualquer cidadão de uma sociedade democrática que, embora cativando visivelmente a atenção de todos, temo que o tenha feito mais em virtude da paixão que emprestava às minhas palavras do que de uma genuína compreensão do seu significado e das suas implicações por parte do meu reduzido auditório.

            Esta singela experiência levou-me a (re)considerar um aspecto da nossa vida política que, embora trivial, tendemos a esquecer em demasia: o facto de qualquer sistema democrático conter, em si mesmo, um princípio autofágico. Acontece que, se o próprio fundamento da democracia enquanto modelo político pode ser encontrado no princípio de liberdade de escolha – na possibilidade de cada indivíduo ser livre, não apenas de escolher o seu próprio percurso na vida, mas também de contribuir para determinar o rumo da sua sociedade e da sua polis –, há algo do qual temos forçosamente de estar conscientes; assim como essa liberdade nos permite escolher tomar decisões políticas conducentes à crescente virtuosidade da democracia, permite-nos igualmente tomar decisões que conduzam ao seu fim. É quase dolorosamente evidente quando assim enunciado. E nem sequer tratamos aqui de uma qualquer conspiração diabólica daqueles infames “inimigos da democracia” cuja fantasmagórica sombra pretensamente paira sobre os incautos; o princípio da dissolução da democracia pela própria democracia decorre, simplesmente, do facto de permitir aos seus cidadãos tomar decisões erradas.

            Regressando ao caso com que começámos, o que se torna ali realmente preocupante é o facto de que, pese embora a manifesta ignorância relativa à realidade histórica à qual faziam menção – limitando-se a fazer fé clichés hoje reproduzidos à mesa do café e do jantar –, todos aqueles jovens, sem excepção, sustentavam o que sustentavam por acreditarem poder estar ali a solução para os grandes males da sociedade contemporânea. Nenhum pretenderia, intencionalmente, contribuir para a sua própria subjugação às mãos de um qualquer tiranete; era, contudo, nessa direcção que indubitavelmente rumavam. Talvez seja este o maior atestado de relevância que podemos atribuir a uma genuína educação para a cidadania, que passa não só pela escola mas também – e fundamentalmente – pelo todo social, por todos nós que somos professores, pais, irmãos, amigos. Nas palavras de Rousseau, embora a vontade geral seja “sempre recta”, “o juízo que a guia nem sempre é esclarecido”. Cabe-nos a nós lutar para que as ocasiões em que reina o esclarecimento suplantem em número a alternativa.

sábado, 29 de janeiro de 2011

COMO FORMA(TA)R CIDADÃOS OU A ARTE DE ENDOUTRINAR


Por: Florbela Carrola






P
or puro acaso, dei com o Livro de Leituras da IV Classe, de 1960. Abri-o, folheei-o e li descontraidamente alguns textos, sem que tal leitura se revestisse de quaisquer preocupações analíticas, como de resto o impunha o espírito do momento. Ainda assim, compreendi que contém curiosas advertências para a vida, apresentando-se como um código de conduta, matizado com cunho fortemente ideológico.

Lembrei-me então, que no processo de ensino-aprendizagem, nem sempre se é bem sucedido na explicação do que são agentes de socialização, qual o papel e significado dos aparelhos ideológicos do Estado e em que consiste o processo de reprodução social. Este livro apresenta-se como um instrumento útil para a compreensão destas temáticas.

Na primeira leitura que fiz, fiquei presa a um pedaço do texto intitulado, Educação Cristã. Neste, o avô explica aos seus netos “que os homens não precisam só de instrução; também precisam de ser educados, e a educação é tão necessária como o pão para a boca”. Prossegue então aquela figura, clarificando que “na família e na escola – pela palavra e, mais ainda, pelo exemplo são os lugares onde as crianças podem ser mais bem educadas.” Na sua avultada sabedoria, vai então aconselhando: “E aqui está porque os meninos devem fugir do convívio, na rua, das crianças mal-educadas, que só lhes ensinam coisas feias. Bela e sã educação moral se contém naquela doutrina cristã que vossa mãe vos ensina e principalmente nos mandamentos da lei de Deus”. O avô conclui que “muitos crimes, muitos males do mundo são devidos apenas à falta da religião”.

Paulatinamente e de forma singela, eis que nos surgem a Escola, Família e Igreja, como instituições privilegiadas na transmissão dos valores, crenças e padrões de comportamento convenientes à manutenção do status quo, cumprindo pois um insubstituível papel na integração social do indivíduo.

A fim de anular a mais leve possibilidade de se poder viver dispensando a religião, o texto, Necessidade da Religião, precocemente ensinava às crianças que esta “é necessária a todos os homens. Jesus Cristo, Homem Deus, foi a suprema Verdade e o supremo bem. A sua doutrina, portanto, encerra o bem e a verdade. Logo, devemos seguir a sua religião, que é a Católica, a qual tem na terra como chefe supremo o Papa, ao qual todos os católicos devem respeito e obediência.”

Também não parece haver qualquer dúvida quanto à religião a praticar, mas se dúvidas houvesse, imediatamente eram dissipadas com a análise do texto, O Papa e a Igreja Católica. Seguindo-o, ficava-se a saber que “o Papa é o Chefe supremo da Igreja Católica e, portanto, o principal representante da maior força espiritual que há no mundo: A Religião Cristã.”

 E assim, com as ideias no lugar e a cabeça arrumadinha, tornava-se então oportuno acautelar a emergência de possíveis aspirações de ascensão social, causa de perniciosas consequências para o Homem e sociedade. Elucidava-se o leitor que, “depois da saúde, o maior, o mais apreciável dos bens é a paz. Pode uma família possuir abundantes meios de fortuna, ter posses para adquirir quanto precise ou apeteça, gozarem de excelente saúde todas as pessoas que a constituem: mas, se estas se não estimarem, se não forem unidas, se a desarmonia as indispuser (…), apesar da sua riqueza, não pode ser feliz. Pode, pelo contrário, uma família pobre, não obstante a escassez dos seus recursos, gozar de uma relativa felicidade, desde que os seus membros se conformem com a sua pobreza, se estimem (…) e se auxiliem uns aos outros.” Este mesmo texto, cujo título é A Paz na Família, remata com o seguinte: “a maior parte das vezes é ambição que dá causa a estas discórdias.”
Felizes, ainda que pobres… assim se socializavam as crianças na década de 60 e anos seguintes. Num tal contexto, a Família conjuntamente com a Escola, tinham a função de transmitir a ideologia dominante, funcionando como aparelhos ideológicos do Estado. Através de um processo de doutrinação, manifesto nestes pedaços de texto, forma(ta)vam-se os jovens, transmitindo-lhes o seu legítimo lugar na estrutura social. Eram ainda entusiasmados a não contestar o sistema de estratificação social, a aceitar a ordem vigente e a agradecer a sua sorte, pelo que funcionavam como eficazes meios de reprodução social.