sábado, 29 de janeiro de 2011

COMO FORMA(TA)R CIDADÃOS OU A ARTE DE ENDOUTRINAR


Por: Florbela Carrola






P
or puro acaso, dei com o Livro de Leituras da IV Classe, de 1960. Abri-o, folheei-o e li descontraidamente alguns textos, sem que tal leitura se revestisse de quaisquer preocupações analíticas, como de resto o impunha o espírito do momento. Ainda assim, compreendi que contém curiosas advertências para a vida, apresentando-se como um código de conduta, matizado com cunho fortemente ideológico.

Lembrei-me então, que no processo de ensino-aprendizagem, nem sempre se é bem sucedido na explicação do que são agentes de socialização, qual o papel e significado dos aparelhos ideológicos do Estado e em que consiste o processo de reprodução social. Este livro apresenta-se como um instrumento útil para a compreensão destas temáticas.

Na primeira leitura que fiz, fiquei presa a um pedaço do texto intitulado, Educação Cristã. Neste, o avô explica aos seus netos “que os homens não precisam só de instrução; também precisam de ser educados, e a educação é tão necessária como o pão para a boca”. Prossegue então aquela figura, clarificando que “na família e na escola – pela palavra e, mais ainda, pelo exemplo são os lugares onde as crianças podem ser mais bem educadas.” Na sua avultada sabedoria, vai então aconselhando: “E aqui está porque os meninos devem fugir do convívio, na rua, das crianças mal-educadas, que só lhes ensinam coisas feias. Bela e sã educação moral se contém naquela doutrina cristã que vossa mãe vos ensina e principalmente nos mandamentos da lei de Deus”. O avô conclui que “muitos crimes, muitos males do mundo são devidos apenas à falta da religião”.

Paulatinamente e de forma singela, eis que nos surgem a Escola, Família e Igreja, como instituições privilegiadas na transmissão dos valores, crenças e padrões de comportamento convenientes à manutenção do status quo, cumprindo pois um insubstituível papel na integração social do indivíduo.

A fim de anular a mais leve possibilidade de se poder viver dispensando a religião, o texto, Necessidade da Religião, precocemente ensinava às crianças que esta “é necessária a todos os homens. Jesus Cristo, Homem Deus, foi a suprema Verdade e o supremo bem. A sua doutrina, portanto, encerra o bem e a verdade. Logo, devemos seguir a sua religião, que é a Católica, a qual tem na terra como chefe supremo o Papa, ao qual todos os católicos devem respeito e obediência.”

Também não parece haver qualquer dúvida quanto à religião a praticar, mas se dúvidas houvesse, imediatamente eram dissipadas com a análise do texto, O Papa e a Igreja Católica. Seguindo-o, ficava-se a saber que “o Papa é o Chefe supremo da Igreja Católica e, portanto, o principal representante da maior força espiritual que há no mundo: A Religião Cristã.”

 E assim, com as ideias no lugar e a cabeça arrumadinha, tornava-se então oportuno acautelar a emergência de possíveis aspirações de ascensão social, causa de perniciosas consequências para o Homem e sociedade. Elucidava-se o leitor que, “depois da saúde, o maior, o mais apreciável dos bens é a paz. Pode uma família possuir abundantes meios de fortuna, ter posses para adquirir quanto precise ou apeteça, gozarem de excelente saúde todas as pessoas que a constituem: mas, se estas se não estimarem, se não forem unidas, se a desarmonia as indispuser (…), apesar da sua riqueza, não pode ser feliz. Pode, pelo contrário, uma família pobre, não obstante a escassez dos seus recursos, gozar de uma relativa felicidade, desde que os seus membros se conformem com a sua pobreza, se estimem (…) e se auxiliem uns aos outros.” Este mesmo texto, cujo título é A Paz na Família, remata com o seguinte: “a maior parte das vezes é ambição que dá causa a estas discórdias.”
Felizes, ainda que pobres… assim se socializavam as crianças na década de 60 e anos seguintes. Num tal contexto, a Família conjuntamente com a Escola, tinham a função de transmitir a ideologia dominante, funcionando como aparelhos ideológicos do Estado. Através de um processo de doutrinação, manifesto nestes pedaços de texto, forma(ta)vam-se os jovens, transmitindo-lhes o seu legítimo lugar na estrutura social. Eram ainda entusiasmados a não contestar o sistema de estratificação social, a aceitar a ordem vigente e a agradecer a sua sorte, pelo que funcionavam como eficazes meios de reprodução social.